“Igrejas e ditadura militar no Brasil”. Este foi o tema de recente debate ocorrido no auditório da Pós-Graduação do Instituto Multidisciplinar, câmpus Nova Iguaçu da Universidade Rural. O encontro foi promovido pelo Laboratório de Estudos sobre a Ditadura Militar (LED/UFRRJ) e mediado pelo professor Jean Sales (UFRRJ), que contou com a presença dos professores Lyndon de Araújo Santos (UFRRJ) e Alexander Gomes, da Secretaria de Educação do município do RJ e da Fundação Municipal de Educação de Niterói.
O tema central da intervenção do professor Alexander Gomes foi a abordagem sobre o legado do ex-bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hipólito, cujo apostolado se deu no contexto da resistência – a nível da Baixada Fluminense – à ditadura militar até então vigente no Brasil. Por convocação do antigo Papa Paulo VI, Dom Adriano chega em Nova Iguaçu em 1966, e encontra uma cidade marcada pela exclusão e pela desigualdade social. Por conta disso, o ex-bispo de Nova Iguaçu assume um olhar mais voltado a mitigação das mazelas sofridas pelo povo iguaçuano, a partir de seu trabalho pastoral com enfoque na Teologia da Libertação e que tinha como lema a “opção preferencial pelos pobres”, sob a inspiração e orientação das diretrizes emanadas do Concílio Vaticano II e de duas Conferências Episcopais na América Latina: a primeira em Medellín (na Colômbia, em 1968) e a segunda em Puebla (no México, em 1979).
O professor Alexander assinalou que, nesse contexto, a Igreja Católica foi muito vigiada e cerceada em sua ação pastoral pelos militares, tendo inclusive sofrido retaliações e ameaças vindas do regime de arbítrio, instaurado no país a partir de 1964. Dentre elas, o sequestro de Dom Adriano ocorrido em 1976, quando o religioso foi capturado por um grupo paramilitar de extrema-direita, que o espancou, despiu e o pintou de vermelho, sendo abandonado em um matagal em Jacarepaguá, na zona oeste do RJ. Logo em seguida, seus sequestradores explodiram seu carro em frente à sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no bairro carioca da Glória. Três anos depois, em 1979, um novo atentado: uma bomba foi detonada contra o sacrário da Catedral de Santo Antônio de Jacutinga, no centro de Nova Iguaçu, em reação ao trabalho pastoral de Dom Adriano, voltado para a defesa dos Direitos Humanos e dos pobres da região. Outros ataques enfrentados pela diocese iguaçuana foram as pichações feitas nos muros de algumas igrejas próximas a Catedral, além da falsificação do semanário litúrgico “A Folha”, escrito por Hipólito e que era lido durante as missas nas diversas igrejas locais. Nesta publicação, o bispo combatia e denunciava as violências cometidas pelo regime militar e pelo assim denominado ‘esquadrão da morte’, um grupo que à época praticava assassinatos, muitos deles de opositores políticos do governo ditatorial vigente.
O professor Alexander fez questão de ressaltar que o bispado de Dom Adriano Hipólito na Diocese de Nova Iguaçu e em toda a Baixada Fluminense estava focado num projeto pastoral de emancipação popular, aliando o binômio Fé e Cidadania no bojo de uma igreja participativa e atuante, através do Centro de Formação de Líderes (Cenfor) criado por ele no bairro iguaçuano Moquetá, além de dar apoio à Comissão Pastoral da Terra. O professor Alexander destacou que a CPT foi alvo de sua dissertação de mestrado com ênfase nos conflitos agrários, fundiários e assentamentos rurais, nos quais Dom Adriano pessoalmente empenhava-se na organização.
De acordo com Gomes, Hipólito também foi um escritor, fundando duas publicações durante seu apostolado: o “Boletim Diocesano” e “A Folha”, periódicos litúrgicos que abordavam diversas questões sociais e que eram distribuídos nas paróquias*.
Ele também mantinha uma coluna semanal no jornal “Correio da Lavoura” denominada “Pergunte ao bispo”, onde interagia com os fiéis católicos acerca dos problemas crônicos do município, à luz da fé.
*O acervo destes periódicos – bem como todo o material editorial referente a Dom Adriano Hipólito – está digitalizado e à disposição para consulta pública no Repositório Institucional de Múltiplos Acervos (RIMA/UFRRJ) do CEDIM – Centro de Documentação e Imagem da Universidade Rural, localizado no Instituto Multidisciplinar (câmpus Nova Iguaçu da UFRRJ).
Segundo o professor Jean Sales – que mediou o debate – a iniciativa da disciplina “História da ditadura militar no Brasil” e do Laboratório de Estudos sobre a Ditadura Militar (LED/UFRRJ) teve como objetivo a análise de aspectos ligados à historiografia e a própria cena histórica recente brasileira, no tocante às relações entre religião e política, e mais especificamente, ao envolvimento de determinados líderes e suas organizações religiosas com a ditadura militar no Brasil.
O professor Lyndon de Araújo Santos leciona na UFRRJ e tem desenvolvido estudos acerca da temática do fundamentalismo evangélico e protestante no país. Ele destacou que o convite para participar do debate coincidiu com o seu projeto de pesquisa sobre as relações das igrejas evangélicas com a ditadura militar, estendendo-se até o cenário atual, a partir de 2018, onde no governo anterior (gestão Bolsonaro) pontificou o protagonismo evangélico.
Como exemplo disso, o professor Lyndon destacou o discurso de posse do pastor Boanerges Ribeiro na presidência do Conselho da Igreja Presbiteriana do Brasil. Dentre outras implicações, o emblemático discurso de Ribeiro denotava uma proximidade programática e ideológica dos presbiterianos com o regime militar ditatorial vigente. De acordo com o professor Lyndon, esse alinhamento político, estrutural e também no discurso não se deu apenas com a Igreja Presbiteriana, mas com a quase totalidade das demais denominações religiosas do universo evangélico/protestante.
Ou seja, palavras e enunciados constantes no discurso do pastor Boanerges, tais como “caterva”, “lei”, “insubordinação”, “desordem”, “liberdade” e “horda” compunham um vocabulário mobilizado pelo governo militar que, naquela conjuntura, aprimorava e aprofundava as práticas da repressão política e da tortura “legitimadas” pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), e usadas como instrumento de coação e intimidação do regime autoritário sobre a sociedade civil, contra os direitos dos cidadãos e dos trabalhadores. Assim como ocorria no país inteiro, também nos ambientes religiosos evangélicos a vigilância, a repressão e a punição aconteceram direcionadas contra lideranças pastorais e igrejas dissidentes, que questionavam a ordem imposta pelo regime. Ele assinalou que a igreja presbiteriana, bem como a maioria das denominações protestantes da época, aderiu e apoiou o governo ditatorial implantado por meio de um golpe civil-militar, em 1964.
O professor da UFRRJ fez questão de frisar que, mesmo antes do golpe militar de 1964, sinais de afinidades com o processo antidemocrático em curso no país já eram percebidos nos ambientes eclesiásticos evangélicos, atravessados por disputas de narrativas provenientes de grupos vinculados a antagônicas vertentes teológicas e políticas. O endurecimento de posições no interior dessas estruturas religiosas geraram – segundo o professor Lyndon Santos – sanções, suspeições, perseguições e até expurgos, num cenário que antecedeu a intervenção militar golpista no Brasil. Ele explicou que essas ações surgiram como resposta reacionária do protestantismo conservador, que reagiu a um encontro realizado pela Confederação Evangélica do Brasil em Recife no ano de 1962, intitulado “Cristo no processo revolucionário brasileiro”, quando intelectuais como Celso Furtado, Gilberto Freyre e Paul Singer debateram com movimentos sociais e instituições religiosas diversas acerca da inevitabilidade da revolução no horizonte histórico do país, inspirada nas Reformas de Base do governo de João Goulart e pela perspectiva de análise da realidade sob o prisma da teologia crítica e não fundamentalista.
O professor Santos chamou a atenção também sobre a “Conferência do Nordeste”, que avaliou como marco no movimento ecumênico progressista, vinculado aos rumos humanistas e cristãos do Conselho Mundial de Igrejas, fato que incomodou muito os segmentos conservadores, por sua repercussão, pela temática social e pela agenda proposta na direção ao “perigoso comunismo”. Ainda de acordo com o professor Lyndon, o temor conservador se dava em razão do envolvimento de lideranças leigas pentecostais e dos emergentes sindicatos rurais do Nordeste, reunidos em torno das Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Líderes negros pentecostais (como Manoel da Conceição) engajaram-se na luta em defesa dos direitos dos camponeses e trabalhadores rurais, no interior de Pernambuco, Paraíba e Maranhão, acentuando com isso as tensões no enfrentamento à grilagem e à demarcação de terras, à compra de juízes e à chegada de empresas multinacionais interessadas em comprar as terras.
Em 1963, houve a publicação do “Manifesto dos Pastores Batistas”, publicado no jornal da Convenção Batista Brasileira, que defendia as Reformas de Base do governo Jango e juntava-se às pressões populares por mudanças estruturais na sociedade. Nesse mesmo contexto, um grupo de lideranças do segmento da Igreja Batista criou um movimento denominado “Diretriz Evangélica”, de cunho social-democrata, que formulava críticas diretas ao sistema capitalista e que atuava junto aos partidos de esquerda e centro-esquerda.
Antes disso, em fins da década de 50, houve uma série de expurgos de professores e alunos nos seminários presbiterianos e metodistas, por conta da adoção nesses espaços de uma teologia mais crítica, inspirada pelo liberalismo teológico e pela proposta de um socialismo cristão.
Segundo o professor Lyndon de Araújo, essa conjuntura de movimentos religiosos internos de cunho progressista trouxe um alerta para as lideranças reacionárias antes de 1964. Em contrapartida, esse quadro redundou num controle institucional maior e mais rígido do pensamento e do discurso evangélico. Além de um monitoramento mais amplo das esferas e dos campos de comunicação e da política. Lideranças religiosas como o pastor Nílson Fanini e o deputado da ARENA (partido que apoiava o regime militar) Daso Coimbra representaram esse movimento de reação dos setores conservadores. O primeiro cursou a Escola de Formação de Oficiais do Exército brasileiro, na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. O segundo – como parlamentar federal de seguidas legislaturas – tornaria-se uma espécie de mediador entre o governo e as igrejas evangélicas, uma espécie de “despachante” dos segmentos religiosos evangélicos conservadores.
Na Assembleia Constituinte de 1988, Coimbra destacou-se como líder do “Centrão” e uma das principais lideranças da bancada evangélica, que surgiria como fonte política religiosa até os dias de hoje. Com isso, novos canais de interlocução foram abertos entre a religião evangélica e o Estado. Outro aspecto importante nessa relação foram os pronunciamentos oficiais de apoio de lideranças do segmento conservador protestante antes, durante e depois do golpe militar de 1º de abril de 1964. Essa convivência também redundou em denúncias e transmissão de informações sigilosas dos dissidentes religiosos aos órgãos de repressão da ditadura, por parte das lideranças eclesiásticas que apoiaram o golpe e que se tornaram colaboradores do regime de exceção, sobretudo após a decretação do AI-5. Nessa época, pastores e leigos cursaram a Escola Superior de Guerra (ESG), onde tomaram conhecimento da Doutrina de Segurança Nacional.
O professor da UFRRJ apontou que tal posicionamento legitimou e reforçou a implementação do ideário dos golpistas que depuseram João Goulart em 1964, ao estabelecer uma relação de reciprocidade entre os evangélicos e o governo militar vigente. Neste sentido, as instituições protestantes de diversas denominações tornaram-se linhas de transmissão e suporte aos discursos dos ditadores de plantão, ancorados internamente por uma teologia conservadora e fundamentalista. Embora reduzidos numericamente e discriminados, os evangélicos estavam presentes em todas as camadas sociais, ocupando espaços nas periferias das cidades por meio dos templos nas igrejas e ações filantrópicas. Por sua vez, governantes nos âmbitos federal, estadual e municipal souberam acolher e incorporar leigos e lideranças eclesiásticas em seus quadros administrativos e burocráticos, por meio de nomeações e benefícios em troca de apoio político e cooptações.
Por conta disso, os evangélicos aprenderam a se relacionar com a esfera pública não somente por intermédio do proselitismo religioso, mas também através da conquista de cargos, empregos, verbas, vantagens e privilégios, ao modo como a nossa cultura política funciona. No plano federal, celebraram a posse do general Ernesto Geisel na presidência do país, que se tornou o primeiro presidente protestante da República, vinculado à Igreja Luterana. No entanto, ocorreram resistências por parte de seus membros. O professor Lyndon acrescentou que, na disputa por espaço no seio das diversas denominações religiosas evangélicas, os assim chamados “progressistas”, “ecumênicos”, “liberais”, “modernistas” e “comunistas” pela banda reacionária perderam cargos e funções por meio de denúncias e demissões, além de cancelamentos morais.
Em meio a esse clima de “caça às bruxas”, houve perseguições por parte de suas igrejas contra os pastores intelectuais e detentores de mandato eletivo, como o presbiteriano deputado federal Lysâneas Maciel, do MDB. Em 1975, ele teve seu mandato cassado pela ditadura, por conta de pronunciamentos feitos contra o regime militar, relativamente a defesa dos presos políticos e das denúncias dos abusos dos órgãos de repressão do Estado contra os direitos humanos. Em 1979, Lysâneas é beneficiado pela anistia e retorna à atividade política.
Outro caso de perseguição contra líderes religiosos dissidentes foi o de Jefter Pereira Ramalho. De origem congregacionista, ele era sociólogo, professor da UFRJ, defensor dos direitos humanos e um dos articuladores do movimento ecumênico no Brasil, tendo ajudado perseguidos políticos a se refugiarem fora do país. Jefter ajudou o professor Paulo Freire a escapar da perseguição política dos militares, abrigando-o por três meses em sua casa, no bairro das Laranjeiras (RJ), antes de Freire partir para o exílio no Chile.
Outro bárbaro episódio foi o de Paulo Stuart Wright, presbítero da Igreja Presbiteriana de Florianópolis. Ele foi assassinado sob tortura nas dependências do DOI-CODI de São Paulo em setembro de 1973, e seu corpo jamais foi encontrado pela família. Wright foi metalúrgico, deputado estadual e militante dos movimentos sociais, principalmente junto aos sindicatos rurais e de pescadores, tendo sido também militante da Ação Popular (AP) desde os fins da década de 60. Antes de desaparecer, Paulo Stuart sofreu a cassação de seu mandato de deputado estadual logo após o golpe militar de 1964 e foi excluído de sua igreja, por ser um “comunista”. Logo depois, a Igreja Presbiteriana de Florianópolis voltou atrás e o reconduziu à condição de presbítero. Seu irmão, o pastor Jaime Wright, fez amizade com o Cardeal-Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, com o intuito de buscar ajuda para a localização do paradeiro do corpo de Paulo Stuart, dando sequência à luta pelos direitos humanos, uma forma encontrada para a resistência da sociedade contra o arbítrio da ditadura. Jaime Wright foi um importante agente central de contato com o Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça, cujo suporte se tornaria fundamental para a investigação e divulgação de dossiês de presos políticos, a exemplo do “Brasil Nunca Mais”.
O professor Lyndon concluiu sua análise afirmando que o contraste existente entre expoentes conservadores e progressistas ecumênicos diz muito de como se deram as relações entre os evangélicos e o governo militar autoritário pós-64. Tanto o cristianismo de libertação quanto o cristianismo reacionário de recorte fundamentalista interagiram conflituosamente – nas condições do cenário de violência da ditadura militar – também ditadas pela conjuntura internacional. Ambos os cristianismos, embora se reconheça as diferenças de matizes entre eles, foram agentes de enfrentamentos e de resistências, mas também de habilidades para negociações. Em suma, o protestantismo evangélico – embora tenha se tornado servil ao regime autoritário e dele se beneficiado de diversas formas – teve em seu meio pessoas e instituições que combateram tais estruturas de poder, ou mesmo agiram fora de seus limites junto à sociedade, aos partidos políticos progressistas e movimentos de resistência. Por conta dessa atitude, foram identificados, investigados, denunciados, torturados e muitos deles foram mortos.
Por Ricardo Portugal – Assessoria de Comunicação do IM/UFRRJ
Mesa do debate: professores Lyndon de Araújo Santos, Alexander Gomes e Jean Sales (mediador)
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